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Um olhar para o que não queremos ver

Circula no meio psicanalítico a seguinte frase que teria sido dita por Freud, em agosto de 1909, prestes a  desembarcar no porto de Nova York, de onde partiria para realizar uma série de conferências na Universidade de Clark: “Mal sabem eles que estamos lhe trazendo a peste…”.

Mito ou verdade, tomo-a de empréstimo para inaugurar uma série de artigos sobre psicanálise nas  empresas. Ou melhor, de uma psicanálise que comecei a desenvolver e aplicar no universo corporativo  há cerca de dez anos, à qual denominei Clínica Corporativa*. De início, uma atividade experimental e intencionalmente solitária (até para me convencer de sua  eficácia). Aos poucos, foi tomando corpo uma proposta a ser desenvolvida com outros psicanalistas que,  assim como eu, desembarcaram na psicanálise após um consistente percurso no mundo empresarial.

A “peste”, a que Freud se referia, não era, evidentemente, a gripe espanhola, assim como a que faço  menção não é a Covid-19. Ambas são alusivas ao desconforto provocado pela psicanálise enquanto um método de tratamento. Uma jornada que privilegia a investigação de processos inconscientes, nos quais a  linha que separa percepção, lembranças e fantasias não é tão nítida; o tempo que se leva para acessar e  tratar essas impressões é indeterminado e as resistências para chegar lá são inúmeras.

Um método com essas características não teria chance de ser bem recebido nem por uma sociedade  produtivista e pragmática como a norte-americana nem por corporações, pois, para as duas, de um modo um tanto simplificado, tempo é dinheiro.

Mas não foi bem assim.

Freud agradou bastante a audiência da época e a psicanálise acabou  encontrando o seu lugar, desde então. E com relação ao meu “desembarque” nas empresas, também não me decepcionei. Por quê? Talvez o inconsciente que se manifesta nessa aceitação seja explicado  pelo bordão importado do universo esportivo: “No pain, no gain”.

Ao longo dos anos, tenho encontrado empresários e executivos dispostos a encarar as transformações  cruciais de seus negócios tal qual a experiência de um processo psicanalítico em consultório. Não raro  esses empresários fazem ou fizeram algum tipo de psicoterapia que os auxiliou a entender que, apesar de o tempo de uma análise não ser o mesmo tempo das empresas, o processo que resulta em tornar o sucesso uma consequência do bem-estar psíquico das pessoas, e não o contrário, vale o investimento.

Cabe agora uma descrição sobre o que entendemos por bem-estar psíquico em comparação ao tema da saúde mental, este presente há tempos nas empresas, que foi bastante reforçado com a pandemia.

As medidas promotoras de saúde mental, mais comumente observadas nas organizações, parecem se  dividir em dois grandes eixos: o preventivo e o restaurativo. O primeiro tende a ofertar atividades como  meditação, yoga e programas de gestão das emoções. O segundo grupo, dedica-se em proporcionar  serviços de assistência psicológica e psiquiátrica aos colaboradores, incluindo seus familiares diretos.  As duas iniciativas são extremamente louváveis e incontornáveis. Uma e outra visam oferecer recursos  para o indivíduo lidar com seu sofrimento mental, cujas causas podem ser inúmeras e não  necessariamente decorrentes do trabalho em si, do ambiente, da gestão. 

Já o bem-estar psíquico leva em consideração um aspecto da vida corporativa que, se não é o gerador  em si do mal-estar psíquico, pode sim contribuir tanto para seu agravamento quanto para ser o seu gatilho.  Refiro-me às relações interpessoais e intergrupais dentro das empresas.

A realidade imprevisível e complexa dos negócios exige uma interpretação rápida do cenário e  transformações adaptativas em ciclos cada vez mais curtos. E com mínima margem para erros. O que só  pode ser conseguido, em termos probabilísticos, com cooperação intensa entre as pessoas, as equipes e as áreas. 

Eis aqui o cerne do desafio. Um afeto comum que irá emergir entre pessoas pressionadas a apresentar  resultados sob circunstâncias de baixo controle é o medo. Com medo, as pessoas tendem a acionar mecanismos de defesa que irão resultar em baixa cooperação.  Cada um cuidando de seus próprios interesses, incapazes de enxergar que contribuir para o interesse  coletivo no final é o que salvaguarda a todos.

Portanto, quando falamos de transformações cruciais nas empresas, assumimos que é preciso transformar, ao mesmo tempo, a ética e o afeto das relações. E por que motivo é tão difícil as relações se transformarem no mesmo ritmo das mudanças para as quais precisam se ajustar? 

Medo do novo

O problema é que, enquanto o novo está sendo requisitado das pessoas, os ânimos ficam agitados e três  afetos se entrelaçam e emergem com força: 

1) O luto por aquilo que deixaremos de ser, fazer e sentir para dar lugar ao novo.
2) O medo, já citado. O que vem pela frente? Vou dar conta? Vai funcionar? Não vou perder meu lugar?  3) A ansiedade, diante de um “novo” novo que possa emergir a qualquer momento e me reinserir nessa  espiral.  

O desafio, portanto, é entender que o tempo das mudanças não é o mesmo tempo das pessoas  assimilarem o significado delas e de se transformarem juntas.  

O que precisa ser instalado em larga escala, para tanto, antes de qualquer apelo ao engajamento  colaborativo, é o valor confiança. Esse valor, no entanto, só se faz presente por meio de exemplo do comportamento das lideranças de  todas as camadas da empresa.

Certa vez, ouvi do trainee de uma rede de varejo: “Pedem que a gente  esteja sempre sorrindo para os clientes, mas internamente estamos sempre de cara fechada uns para os  outros”. Quando eu olhava para o rosto das lideranças, o que mais notava eram rostos sisudos  pedindo equipes sorridentes. 

É neste ponto que o trabalho de escuta e elaboração dos processos inconscientes se faz necessário, numa interseção entre indivíduos e grupos. Nosso psiquismo tem seu tempo próprio. Quando estamos  inseridos em grupos, esse tempo se torna ainda mais dilatado.

O bem-estar psíquico, portanto, não se traduz por cura ou aprendizagem, mas pelo processamento  refinado dos afetos e pensamentos associados, que circulam num grupo e que podem manter a angústia  em níveis mais baixos e administráveis. Extinguir a angústia seria uma idealização que devemos evitar.

A aproximação entre psicanálise e trabalho não é estranha ao pai dessa ciência. Freud dizia que um sujeito  psiquicamente saudável é alguém apto a amar e trabalhar. Para ele, “nenhuma outra técnica para a  condução da vida prende a pessoa tão firmemente à realidade como a ênfase no trabalho, que no mínimo a insere de modo seguro numa porção da realidade, na comunidade humana (…)”. A questão que nos fazemos é se Freud diria o mesmo nos dias de hoje, quando tudo parece não colaborar  para “inserir a pessoa de modo seguro numa porção da realidade”. 

O contexto de incerteza e complexidade, que ronda as decisões tanto das pessoas (e suas carreiras) quanto das empresas (e seus negócios), gera uma identificação inédita entre ambas na luta pela ocupação  e proteção de seus lugares em seus respectivos espaços de pertencimento.

Zona de conforto

Temas sociais, como diversidade, inclusão e meio ambiente, andam lado a lado com a agenda de digitalização do negócio, engajamento de talentos e modelos de gestão, para ficar em poucos exemplos. Todos têm o potencial de energizar as equipes para um movimento transformativo ou acionar nelas medos paralisantes ou mesmo destrutivos. Para evitar que se tome este último caminho é preciso que as lideranças se tornem fiadoras da confiança como valor-diretriz. Ao fazê-lo, criam um ambiente seguro para que ideias, opiniões e críticas desconfortáveis sejam bem recebidas (não importa de quem) e sejam  debatidas justamente por serem desconfortáveis.

É ao sair da zona de conforto que importantes avanços são conseguidos, pessoal e empresarialmente.  Mas atenção, para sair da zona de conforto é preciso que as pessoas e as equipes ampliem suas  respectivas zonas de conforto. Como assim? Que paradoxo é esse? O conforto aqui é o de cada um poder  falar de seus incômodos com mais pessoas e áreas da empresa, único jeito de quebrar a lógica de silos e criar uma aliança sólida para enfrentar os desafios externos com mais agilidade, inovação, superação de conflitos e bem-estar psíquico. Esse é o melhor que o trabalho de uma psicanálise nas empresas pode deixar como legado.

HAMILTON FREDIANI DE FARIA CORRÊA
*Clínica Corporativa – https://www.clinicacorporativa.com.br/

Photo by Edurne Tx on Unsplash

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