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A chance de aprimorar nossas capacidades e comportamentos reside nas boas e más experiências que temos com os outros. Assim, como um narcisista pode ser capaz de aprender com outras pessoas e ter vivências de fato produtivas, no sentido de autodesenvolvimento, se apenas enxerga a si mesmo?

Narciso é um personagem da mitologia grega de beleza deslumbrante. Muito soberbo, não se interessava por outras pessoas, incluindo a ninfa Eco, que se apaixonou por ele e tudo fazia para chamar sua atenção, mas sem sucesso – Narciso nunca olhava para ninguém além de si mesmo. Certo dia ele se debruça sobre um lago e fica fascinado com a própria imagem refletida na água. Literalmente, ele mergulha em si mesmo e desaparece nas águas. A ninfa Eco não suporta a tristeza e torna-se o que conhecemos como “eco”, a repetição de som no vazio.

Sigmund Freud usou esse mito para descrever o que chamou de narcisismo – o apego à vivência infantil de acreditar-se o centro do mundo, como o bebê que recebe alimento e cuidados da mãe e acredita ser tudo para ela, o motivo de sua existência.  Segundo o criador da psicanálise, o narcisismo é uma fase natural do desenvolvimento – nos bebês o prazer advém do próprio corpo, fonte de atenção do outro. No entanto, crescer, tornar-se um ser autônomo, implica justamente em redirecionar esse “autoerotismo” para outras pessoas e objetos, reconhecendo os outros como diferentes, que podem ser amados e também nos fazer crescer com suas qualidades e defeitos. No entanto, muitos se mantêm fixos na própria imagem, tal qual um bebê, tal qual Narciso, que “não reconhece o que não é espelho”.

Verificamos isso com frequência no mundo corporativo. Recentemente, lidamos com o caso de um líder que mostra irritação quando não é reconhecido como “maravilhoso” em todas as suas atitudes e habilidades. Exatamente.  Uma perspectiva prejudicial, pois a chance de aprimorar nossas capacidades e comportamentos reside nas boas e más experiências que temos com os outros – a vida nos exige a todo o momento que adaptemos comportamentos às respostas do ambiente e às reações das outras pessoas. Assim, como um narcisista pode ser capaz de aprender com outras pessoas e ter vivências de fato produtivas, no sentido de autodesenvolvimento, se apenas enxerga a si mesmo? E mais: pena de quem trabalha com “narcisos”, principalmente se forem subordinados a eles – tornam-se, tal qual a ninfa Eco, pessoas sem chance de ter voz própria.

“A valorização da imagem e do sucesso a qualquer custo reduz a tolerância às mínimas divergências – o que Freud chamou de narcisismo das pequenas diferenças – e acirra conflitos, seja nas pequenas discordâncias do cotidiano ou nos grandes conflitos bélicos”, escreve a psicanalista Maria Laurinda Ribeiro de Souza, professora do Instituto Sedes Sapientiae.

A doutora em psicologia Lisa Firestone, autora do livro Tem self under siege (O eu aprisionado, em tradução livre), fala sobre a frequente confusão que a sociedade faz entre autoestima e narcisismo. “A autoestima difere do narcisismo, pois é construída sobre o reconhecimento realista não apenas de nossas qualidades, mas de nossas dificuldades e das muitas vezes em que as superamos, muitas vezes com ajuda de outros. O narcisismo, inversamente, é muitas vezes baseado em medo do fracasso, no foco em si mesmo. É um impulso insalubre para ser visto como o melhor, o que reflete insegurança profunda e sentimento subjacente de inadequação”, diz.

Como reconhecer em si mesmo o narcisismo? Um teste elaborado pelos pesquisadores Robert Raskin e Howard Terry pode ajudar a identificar comportamentos e pensamentos que indicam que estamos tendo uma visão distorcida de nós mesmos. O Inventário de Personalidade Narcísica é atualmente a ferramenta mais usada e aceita pela psicologia social para mensurar traços de personalidade narcísica, como a crença de ser especial, impulsividade, agressividade e dominância. O questionário consiste em 40 perguntas sobre seu comportamento em relação aos outros, seus sentimentos sobre seu próprio corpo e aparência e como você avalia sua posição no mundo – “um seguidor ou um líder”. Realizar o teste pode ser interessante para refletir sobre os próprios comportamentos. Você pode acessar uma versão on-line do questionário (em inglês) em openpsychometrics.org/tests/NPI/.

 

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